sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Construindo o prazer pela leitura: minha infância, minha escola

Alexandre Fernandes


Encontrar o prazer pela leitura é o que de melhor podemos fazer por nós. Não tenho dúvidas disso. Penso que ninguém em sã consciência admite o contrário. Numa sociedade grafocêntrica como a nossa, sabemos bem a que coisas está sujeito aquele que não domina a leitura (claro que a escrita também, mas me aterei aqui à leitura). A leitura é capaz de nos transportar para outros mundos, iluminando-nos. É capaz de nos fazer transcender.

Há um escritor de quem gosto muito, o Milton Santos. Ensinou-me (além de outras milongas) sobre o “não-lugar”, sobre o “não-tempo” ao qual nós todos, pobres mortais, fomos conduzidos, resultado de um mundo globalizado e pós-moderno.

Hoje, por conta da tecnologia com seus satélites e fibra óptica, conversamos com pessoas em qualquer parte do mundo em tempo instantâneo, real time. Preferimos ir à Capital fazendo o trecho aéreo Porto Seguro – Salvador do que ir de Porto à Canavieiras. Advinha quem chega primeiro. Se contarmos com o trânsito das cidades grandes, esta analogia fica ainda mais interessante.

A noção que tinham os Modernos de tempo e espaço se desmanchou no ar, parafraseando Marx. Vivemos a era da incerteza, do irreal, do simulacro em que o lugar e o tempo não existem mais. Isso é um fato.

Contudo, é a leitura, mais do que qualquer processo tecnológico, que nos faz transcender, lançando-nos a um outro mundo. Borges dizia que a leitura é uma forma de felicidade. Contumaz leitor, cego aos 57 anos, não se fez de rogado, tinha quem lia para ele. Apossou-se dos olhos dos outros para poder ler e continuar se regozijando. Borges queria continuar feliz. Creio ter feito isso com minha mãe; apropriei-me de seus olhos durante certo tempo.

Quando era pequeno, ela contava histórias gostosas. Era muito divertido e sempre pedia para repetir. Tinha trechos em que avançava e eu mesmo “tomava as frentes” e contava o resto da história. Outras vezes pedia para ir mais devagar. Não sabia, mas eu já estava lendo mesmo sem ir prá escola. A leitura, ainda bem, independe da escola.



Claro que a escola é um espaço para sistematizar a leitura, mas muitas vezes acaba prestando um desserviço. Para os interessados nos assunto, há o livro da professora Magda Soares, Linguagem e Escola.

Voltando as gostosuras de mamãe. Às vezes na parte em que a bruxa oferecia a maçã à Branca de Neve, pow! uma magia acontecia. Eu era enfeitiçado e franzindo os olhos, saboreava aquelas palavras, deliciando-me com elas, sorvendo-as lentamente como quem demora ao máximo para ler o último capítulo de um livro que está gostando. Ficava agitado, o coração palpitando até que a Branca de Neve acordava com o beijo do príncipe. Encantado.

Teve um dia em que mamãe resolveu me apresentar ao Pinóquio. Acho que estava, na verdade querendo me ensinar algumas coisas como ser um menino comportado e não mentir, principalmente. Mas, quando a gente é criança, o que crescem mesmo são as orelhas. A tia da escola sempre as puxava. Aliás, não me lembro da tia contando histórias não. Lembro de mandar escrever o lema da bandeira do Brasil em uma prova na primeira série. Primeira série, sete anos, e meu tempo já era desperdiçado.

Estudei em colégio de padres. Lá tinha uma biblioteca com muitos livros. Ficava trancada sempre. A gente só poderia ir lá quando estivesse na quarta série. E quando lá chegasse tinha um dia específico para a leitura: às sextas, durante a tarde. De manhã tinha aula.

Acho que por conta de mamãe, minha vontade de chegar à quarta série e ter acesso aos livros foi enorme. Parecia eu o Adso de Umberto Eco querendo chegar à torre onde a Igreja guardava seus livros.

Minha primeira vez foi maravilhosa. Lembro-me dos detalhes. Naquele espaço mágico havia livros de capa dura com desenhos. Ilustrações. Muitas. Quando virava o livro de posição, o desenho da capa mudava e mudava de novo e mudava. Eram vários livros, todos com letras grandes e muitos desenhos. Várias histórias. E o bom é que ninguém nunca me cobrou nada sobre essas leituras, como teimam em fazer com os meninos e meninas que vão para o vestibular.

Me causa – pronome usado erroneamente, dirão os gramatiqueiros –, digo, causa-me estranheza essa coisa de ter de ler para o vestibular. Já pensou ler João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro, Carlos Drummond de Andrade, Rosa do Povo, Graciliano Ramos, Vidas Secas porque é uma exigência de um dia de prova? “Devolver” essas preciosidades em um dia? Em quatro ou cinco perguntinhas?

Ninguém deveria ser obrigado a ler. Nem obrigado a responder perguntas que os próprios autores dizem não entender (este período ficou ambíguo, de propósito?).

Como construir prazer pela leitura quando há uma pedagogia da não leitura em nossas escolas? Pra que dia da leitura? Se quisermos que os meninos e meninas leiam, a leitura deve estar presente de segunda a sexta, do início ao fim do ano, os “no mínimo” duzentos dias letivos.

Mas não é isto o que acontece. Nas escolas, muitas vezes, por conta de certas exigências e conteúdos que “precisam ser cumpridos”, atropelamos o prazer, sacrificamos o sabor da descoberta da leitura.

Mas como assim “conteúdos que precisam ser cumpridos”? Quem disse isso? Que currículo é esse? A favor de quem foi construído? Contra quem? Normalmente a resposta é o vestibular, o mercado, o sistema.

Às vezes fico achando que as escolas são um espaço meio chato. Séria, chata, dura. Espaço para fazer ciência é o que dizem. Já reparam nos rostos de alguns cientistas? É uma gente pouco afeita aos brinquedos, como diria Rubem Alves, e por isso, pouco feliz. É uma gente que, normalmente, também não lê. E o que é o pior. Exigem que os outros leiam. Aliás, está cheio de professor que não lê e diz que os meninos e meninas...

Retornando ao vestibular, alguns iluminados podem até dizer que descobriram sim o prazer pela leitura tendo de estudar (todas as disciplinas e ainda ler os livros) para os vestibulares da UESB, UNEB e UFBA. Um catatau de coisas para cumprir, não é mesmo? Por isso, desconfio.

Eu prefiro confiar mesmo é em minha mãe. Lendo para mim abriu portas para a leitura do mundo. Lendo e relendo. Sem me cobrar nada. Lendo apenas. Inventando histórias. Deveríamos ter espaços para contação de histórias nas escolas. Seria bacana...

Uma vez, Hans Christian Andersen entrou lá em casa. O patinho feio. O soldadinho de Chumbo. Com suas histórias me ensinou muita coisa. Uma delas foi a ousadia de apontar: O rei está nu! O rei está nu!

Talvez seja o caso, se quisermos mesmo formar leitores poderíamos começar seriamente por re-ler “histórias infantis”. O Rei está nu é boa pedida. Fica o convite para transcender. Senão, poderíamos reler o Pinóquio, sem ofensas, é claro.

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