sábado, 27 de dezembro de 2008

Michel Foucault _ Vigiar e punir _ Falando de Escola _ Leiam... Vale muito a pena

Pouco a pouco - mas principalmente depois de 1762 - o espaço escolar se desdobra; a classe torna-se homogênea, ela agora só se compõe de elementos individuais que vêm se colocar uns ao lado dos outros sob os olhares do mestre. A ordenação por fileiras, no século XVIII, começa a definir a grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos na sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um em relação a cada tarefa e cada prova; colocação que ele obtém de semana em semana, de mês em mês, de ano em ano; alinhamento das classes de idade umas depois das outras; sucessão dos assuntos ensinados, das questões tratadas segundo uma ordem de dificuldade crescente. E nesse conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno segundo sua idade, seus desempenhos, seu comportamento, ocupa ora uma fila, ora outra; ele se desloca o tempo todo numa série de casas; umas ideais, que marcam uma hierarquia do saber ou das capacidades, outras devendo traduzir materialmente no espaço da classe ou do colégio essa repartição de valores ou dos méritos. Movimento perpétuo onde os indivíduos substituem uns aos outros, num espaço escondido por intervalos alinhados. A organização de um espaço serial foi uma das grandes modificações técnicas do ensino elementar. Permitiu ultrapassar o sistema tradicional (um aluno que trabalha alguns minutos com o professor, enquanto fica ocioso e sem vigilância o grupo confuso dos que estão esperando). Determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar. J.-B. de La Salle imaginava uma classe onde a distribuição espacial pudesse realizar ao mesmo tempo toda uma série de distinções: segundo o nível de avanço dos alunos, segundo o valor de cada um, segundo seu temperamento melhor ou pior, segundo sua maior ou menor aplicação, segundo sua limpeza, e segundo a fortuna dos pais. Então, a sala de aula formaria um grande quadro único, com entradas múltiplas, sob o olhar cuidadosamente "classificador" do professor: Haverá em todas as salas de aula lugares determinados para todos os escolares de todas as classes, de maneira que todos os da mesma classe sejam colocados num mesmo lugar e sempre fixo. Os escolares das lições mais adiantadas serão colocados nos bancos mais próximos da parede e em seguida os outros segundo a ordem das lições avançando para o meio da sala... Cada um dos alunos terá seu lugar marcado e nenhum o deixará nem trocará sem a ordem e o consentimento do inspetor das escolas. [Será preciso fazer com que] aqueles cujos pais são negligentes e têm piolhos fiquem separados dos que são limpos e não os têm; que um escolar leviano e distraído seja colocado entre dois bem comportados e ajuizados, que o libertino ou fique sozinho ou entre dois piedosos.(18) As disciplinas, organizando as "celas", os "lugares" e as "fileiras" criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais pois que regem a disposição de edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois projetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias. A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de "quadros vivos" que transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas. A constituição de "quadros" foi um dos grandes problemas da tecnologia científica, política e econômica do século XVIII; arramar jardins de plantas e de animais, e construir ao mesmo tempo classificações racionais dos seres vivos; observar, controlar, regularizar a circulação das mercadorias e da moeda e estabelecer assim um quadro econômico que possa valer como princípio de enriquecimento; inspecionar os homens, constatar sua presença e sua ausência, e constituir um registro geral e permanente das forças armadas; repartir os doentes, dividir com cuidado e espaço hospitalar e fazer uma classificação sistemática das doenças: outras tantas operações conjuntas em que os dois constituintes - distribuição e análise, controle e inteligibilidade - são solidários. O quadro, no século XVIII, é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um processo de saber. Trata-se de organizar o múltiplo, de se obter um instrumento para percorrê-lo e dominá-lo; trata-se de lhe impor uma "ordem".

sábado, 6 de dezembro de 2008

Cristovam Buarque!!! Ler atentamente

Não faz muito tempo, o Brasil era um país dividido pelo debate entre idéias: economia aberta ou fechada; privatização ou estatização; democracia ou autoritarismo; socialismo ou capitalismo. Hoje, o debate ideológico se limita a cotas e bolsas. De um lado, os que negam aos pobres e negros o apoio de bolsas e cotas; de outro, aqueles que consideram bolsas e cotas suficientes para resolver o problema da pobreza e do preconceito. Parte da população é contra a distribuição de bolsas para pobres; parte considera que a distribuição de bolsas é suficiente para credenciar um governo. O mesmo acontece com as cotas. Parte é contra usálas como instrumento para formar uma elite universitária negra; outra parte comemora a existência das cotas como se fosse a solução para todos os problemas que pesam sobre os negros brasileiros.

Há uma razão que unifica os dois lados do nosso pobre debate: o desprezo aos pobres e excluídos, que caracteriza os formadores de opinião no Brasil. Tanto os que defendem quanto os que criticam bolsas e cotas.

Aqueles que hoje são contra as bolsas, há séculos são insensíveis à tragédia de um país que condena dezenas de milhões de pessoas à fome e à miséria. Não defenderam no passado a revolução que era necessária para que as bolsas fossem hoje desnecessárias. E os que comemoram as bolsas como o grande mérito de um governo são insensíveis à tragédia de um país que condena parte considerável de suas famílias à necessidade de ajuda. Contentamse com as bolsas, sem defender a revolução que permitirá abolir a necessidade delas.

No caso das cotas é ainda mais grave.

Os que são contra nunca se sensibilizaram com a exclusão de negros em nossa elite, e temem que vagas da universidade sejam ocupadas por jovens negros com alguns décimos a menos nas notas do vestibular. Os que são a favor de cotas lutam pela reserva de vagas, mas não para que todos terminem o ensino médio em escolas de qualidade; reservam lugares na universidade, mas mantêm a falta de concorrência por causa das multidões excluídas pelo analfabetismo e pela evasão escolar.

Lutamos para manter privilégios ou incorporar os privilegiados, não para eliminar os privilégios. A crítica ética às bolsas e cotas está na defesa da igualdade educacional: em vez de impedi-las, torná-las desnecessárias.

A seleção de futebol não precisa de cotas, porque a bola é redonda para todos; chegam lá os mais talentosos e persistentes. Só uma escola "redonda" para todos permitiria abolir a necessidade de cotas e de bolsas. Isso exige uma revolução na educação de base. Mas os defensores e opositores de bolsas e cotas desprezam o radicalismo da solução definitiva: a igualdade de oportunidades para abolir todos os privilégios. Que acabaria com a disputa atual de quem tenta restringir os privilégios ou fazer ter acesso a eles.

Em um país com ânsia de justiça, bolsas e cotas são necessárias como paliativos, distribuindo pequenas ajudas aos pobres e pingando negros na universidade. Não devemos recusar esses instrumentos de discriminação afirmativos, mas tampouco comemorar a necessidade deles.

O Brasil é um país dividido, com uma sociedade partida. Bolsas e cotas são migalhas necessárias, jogadas de um lado para o outro, mas não levam a uma revolução que abra a porta por onde os excluídos atravessem para a modernidade, vivam plenamente sem necessidade de bolsas ou cotas. Essa porta é a escola igual para todos, capaz de quebrar privilégios e levar o Brasil a um salto civilizatório.

Diante da pobreza de idéias, divididas na superficialidade e no simplismo, essa opção exige um debate hoje impossível. A prova é que um artigo como este será certamente recusado, tanto pelos que defendem quanto pelos que se opõem às cotas e às bolsas. Acostumados a defender ou condenar migalhas e pingos, lutam para manter os privilégios, sem buscar soluções que permitam dispensar as bolsas e as cotas. Mas isso seria querer demais da elite brasileira: porque não há bolsas nem cotas de lucidez e radicalismo, nem gosto por soluções definitivas.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).

Artigo publicado no jornal O Globo em 6/12/2008